Quando uma nova molécula com potencial de ser usada como defensivo agrícola é desenvolvida no Brasil, é obrigatório que seja aprovada por órgãos de três ministérios: Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Meio Ambiente e Saúde, no caso deste último por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão responsável pela liberação de novas substâncias no país. “Isso demanda pelo menos uns dez anos. A empresa tem que gerar um dossiê no qual tudo o que se faz da molécula é apresentado”, explica Nádia Rodrigues, pesquisadora do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas da Universidade Estadual de Campinas (CPQBA-Unicamp). Uma das fases desse longo e complexo processo é o estudo de resíduos da molécula em campo.
Doutora em Engenharia Química, Rodrigues coordena atualmente a Divisão de Química Analítica do CPQBA. Entre suas principais atribuições está justamente realizar esse monitoramento em parceria com as empresas. “A empresa faz um experimento de campo e estuda a degradação do princípio ativo. Depois, essas plantas vêm para o laboratório e a gente faz as análises. Nossa parte é verificar se existe esse resíduo ou não”, explica a pesquisadora. Para isso, é importante conhecer muito bem toda a cadeia de produção do item agrícola: onde foi plantado, como foi colhido, características de clima e solo e a quantidade e frequência de aplicação do agrotóxico em análise.
O objetivo do monitoramento é verificar se, no alimento, os níveis do princípio ativo aplicado não excedem o chamado Limite Máximo de Resíduos (LMR). “O governo tem programas de monitoramento há cerca de dez anos”, realça Rodrigues. Um deles é específico para resíduos de agrotóxicos em alimentos, chamado Programa de Avaliação de Resíduos de Agrotóxicos (PARA). O outro, para resíduos de drogas veterinárias: Programa de Análise de Resíduos de Medicamentos em Alimentos de Origem Animal (PAMVet). “Esses programas têm uma lista enorme de substâncias. Todo ano se coletam amostras no mercado mandando para diversos laboratórios fazerem essas análises”, detalha Rodrigues.
Para fazer as análises o laboratório precisa ser credenciado nas chamadas Boas Práticas de Laboratório (BPL, responsabilidade do Instituto Nacional de Metrologia, o Inmetro), comprometendo-se a atender diversas normas e especificações técnicas. “Fomos o único laboratório de universidade que foi reconhecido pelo Inmetro em BPL na área de agrotóxicos”, salienta Rodrigues. “O que mais se preza é a rastreabilidade das amostras. Temos que ter todos os dados. No final, se houver algum resíduo, todos são prejudicados”, diz.
Na trilha do glifosato
O segundo projeto destacado por Rodrigues foi o monitoramento dos resíduos de um dos herbicidas mais utilizados (e polêmicos) do mundo, o glifosato. Mais do que apenas à substância em si, a polêmica se refere ao seu uso indissociável das tecnologias de transgenia. O glifosato é aplicado nas lavouras de culturas geneticamente modificadas (sobretudo soja, mas também algodão e milho), as únicas plantas que resistem à ação do princípio ativo. Qualquer outro vegetal, principalmente as ervas-daninhas, é eliminado pela aplicação do produto, impedindo que interfira no crescimento da variedade cultivada. Muitos pesquisadores, entidades ambientalistas e de saúde (governamentais e não-governamentais) e movimentos sociais apontam potenciais riscos à saúde e ao ambiente em decorrência do cultivo e consumo da soja transgênica produzida com glifosato. Outros pesquisadores, empresas de biotecnologia e entidades voltadas ao agronegócio descartam tais preocupações e defendem o uso do agente químico na tarefa de aumentar a produtividade agrícola da soja.
O passo inicial era saber se no Brasil o uso do glifosato tem respeitado as especificações e se haveria, na soja consumida no mercado interno, resíduos do herbicida. A pesquisadora da Unicamp comenta que, em grande parte devido à alta complexidade da análise, somente agora o glifosato deve ser inserido no monitoramento do PARA. “As análises de glifosato são demoradas e caras. Quando a gente faz as análises, quantifica tanto o glifosato quanto o metabólito dele, que é o ácido aminometilfosfônico. Temos um aparelho [de análises cromatográficas] HPLC com detector de fluorescência dedicado só para isso.” Além de equipamentos, é necessário pessoal especializado para realizar tais análises. E é preciso tempo.
Apesar de o glifosato não ser ainda monitorado pelos programas governamentais, as próprias empresas vêm se antecipando. A equipe da divisão coordenada por Rodrigues foi convidada a participar de um projeto de uma grande empresa de biotecnologia para monitorar os resíduos do herbicida nos grãos de soja geneticamente modificada e no solo das áreas de cultivo. O estudo foi realizado com várias instituições de pesquisa brasileiras. “Foi feito um monitoramento durante 5 anos em 8 áreas de fazendas particulares que comercializam normalmente a soja”, conta a pesquisadora do CPQBA. Foram coletadas amostras no Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Bahia. A partir dos dados gerados foi elaborado o livro Monitoramento Ambiental da Soja Roundup Ready (lançado em 2014), trazendo as principais conclusões.
O que se constatou foi que nenhuma das amostras de grãos de soja analisadas continha resíduos de glifosato superiores aos aceitáveis. “Quando você utiliza o agrotóxico como realmente deve ser utilizado”, sublinha Rodrigues, referindo-se à necessidade de cumprir-se o receituário agronômico e as especificações técnicas de aplicação do produto, “normalmente você não tem problema de ultrapassar o Limite Máximo de Resíduo aceitável”.
Abakerli, da Embrapa, que participou também desse projeto, diz que os valores encontrados se localizavam muito abaixo dos níveis tolerados. “A tolerância é 10,0 mg/kg e o maior valor observado, em cinco anos, foi próximo de 2,0 mg/kg, bem abaixo da tolerância”, salienta. Ela assinala que uma contribuição importante decorrente do estudo foi o estabelecimento do chamado tempo de meia-vida do glifosato na soja, ou seja, o tempo necessário para que a substância seja degradada até restar metade da concentração anteriormente presente. “A dissipação, na soja, é de aproximadamente 9 dias. Significa que a cada 9 dias você tem metade da concentração que tinha antes”, aponta Abakerli.
Tampouco encontrou-se contaminação dos solos avaliados, embora, ressalva a especialista, isso possa depender de fatores como os tipos de micro-organismos presentes. “No solo, o maior degradador do glifosato são os micro-organismos. Se o solo for pobre em matéria orgânica, ele pode permanecer porque é uma molécula bastante estável”, explica. Apesar disso, garante, não se encontrou qualquer evidência de que o herbicida poderia se infiltrar no solo. “No solo, foi feito em camada superficial e até 20 cm de profundidade para avaliar se havia lixiviação [simplificadamente: dissolução], e aparentemente não há. Não vai contaminar lençóis freáticos, por exemplo”, conclui.
“Esses dados são muito importantes. Em nenhum outro lugar foi feito um monitoramento dessa forma”, afirma Rodrigues. Vale ressaltar que mesmo já liberado um princípio ativo, os estudos de acompanhamento continuam sendo feitos. Para que seja renovada a licença de comercialização de um agrotóxico exige-se que siga aprovado em todos os testes, incluindo o de monitoramento de resíduos.
Critérios de segurança
Para se avaliar o quanto de resíduo de agrotóxico pode permanecer em um alimento sem que isso cause danos à nossa saúde, as agências de vigilância sanitária em diversos países utilizam alguns critérios baseados em muitos estudos.
O principal é o Limite Máximo de Resíduos, ou LMR, definido pela Anvisa como “a quantidade máxima de resíduo de agrotóxico ou afim, oficialmente permitida no alimento, em decorrência da aplicação em uma cultura agrícola, expresso em miligramas do agrotóxico por quilo do alimento (mg/kg)”. Para estabelecer esse limite, são utilizados parâmetros cientificamente determinados, como, por exemplo, a Ingestão Diária Aceitável (IDA), que é, segundo a Anvisa, “um parâmetro de segurança definido como a quantidade máxima de agrotóxico que podemos ingerir por dia, durante toda a nossa vida, sem que soframos danos à saúde por esta ingestão”. Os valores de IDA são calculados para cada tipo de agrotóxico e expressos em miligramas da substância por quilo de peso corpóreo da pessoa.
A questão dos agrotóxicos é altamente polêmica tanto no Brasil quanto em outros países. Enquanto alguns grupos consideram indispensável seu uso para fomentar uma agricultura suficientemente produtiva, outros atribuem aos agroquímicos o risco de acumular-se em nosso organismo, causar doenças em humanos e animais e contaminar o ambiente. A resposta definitiva para essa questão é complexa e envolve fatores os mais diversos (econômicos, políticos, científicos etc.). Fato é que os agrotóxicos (ou defensivos agrícolas, sendo que a terminologia muda de acordo com interesses de grupos diferentes) são atualmente bastante empregados no mundo, e o Brasil recebe destaque como um dos maiores consumidores desse tipo de produto a nível global.
O mistério do mamão
Em monitoramento de resíduos de agrotóxicos, foram particularmente importantes dois projetos dos quais a equipe do CPQBA participou. No primeiro, uma parceria entre várias instituições de pesquisa do Estado de São Paulo permitiu que o mamão brasileiro pudesse se estabelecer no mercado europeu.
“O Brasil é um grande exportador de mamão. E o nosso mamão era barrado na União Europeia de um modo geral. Isso criou muito transtorno”, conta Rosângela Abakerli, pesquisadora aposentada da Embrapa Meio Ambiente. “O grande problema é que a UE dizia que o mamão tinha ditiocarbamato, fungicida à base de enxofre, em níveis inaceitáveis, de acordo com a tolerância deles”, explica. Os produtores brasileiros alegavam que não usavam ditiocarbamato na produção de mamão.
Abakerli coordenou o projeto que, com equipe do CPQBA e do Instituto Adolfo Lutz, resolveu o mistério. As pesquisadoras desconfiavam que estava ocorrendo algum engano das agências fiscalizadoras europeias, já que as análises realizadas no Brasil não demonstravam a presença do fungicida. Por estarem usando metodologias diferentes, algum outro composto poderia estar sendo identificado como o fungicida. “O ditiocarbamato tem enxofre e é dosado na forma de dissulfeto de carbono (CS2). Qualquer enxofre poderia mascarar o resultado”, detalha Abakerli. “Sabíamos que não tinha os resíduos; dependendo da metodologia você acaba quantificando mais ou menos”, diz Nádia Rodrigues.
“Começou o projeto. Envolveu pessoal de campo, montando experimentos em campo no Espírito Santo, Bahia e Distrito Federal. Foram plantados mamoeiros e nunca foi aplicado nada, nem de agroquímicos nem de fertilizantes, que contivessem enxofre na molécula”, conta Abakerli. Colhidas as frutas, amostras foram submetidas a três instituições de pesquisa, cada qual realizando o monitoramento por uma metodologia diferente. “Havia traços de CS2, quantidades muito pequenas”, explica a especialista. A pergunta era: de onde estava vindo o CS2, se nada contendo enxofre tinha sido aplicado?
O enxofre, chegou-se à conclusão, não era proveniente do agrotóxico, e sim do próprio mamão. “A gente monitorou e identificou que era uma substância inerente ao mamão que estava sendo quantificada – porque continha enxofre – como sendo o agrotóxico”, destaca Rodrigues. Através de uma parceria com o Laboratório Thompson, do Instituto de Química da Unicamp, determinou-se, via espectrometria de massas, qual era a substância. “Chegamos à conclusão de que era benzilisotiocianato, que está presente naturalmente no mamão, tendo um papel de proteção da fruta”, conta a ex-pesquisadora da Embrapa. “Durante o processo analítico essa molécula se decompunha e mascarava o resultado.”
Com esses resultados em mãos, contam as entrevistadas, foi apresentado um relatório ao Mapa, que o submeteu à UE, culminado na modificação dos limites de tolerância do CS2 aceitos pelo mercado europeu. “Aí as exportações voltaram ao patamar em que deveriam estar”, diz Abakerli.
Fonte: Disponível no Portal da Unicamp
Autor: Gustavo Steffen de Almeida é graduado em ciências dos alimentos (USP), mestre em ciências de alimentos (Unicamp) e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.
Texto originalmente publicado em Portal da Unicamp